segunda-feira, novembro 27, 2006

A VIDA!


A vida passou. De passos miúdos e lentos para não escorregar, empoleirada que ia nos seus sapatos de tacão muito alto e fino como uma farpa. A vida descia a calçada, nas suas apertadas calças, deixando sobressair um enorme “posterior” cinzelado, pela espessa camada de celulite. A vida tentava bambolear-se. Tentava que as ancas, imperceptíveis, rolassem; mas o que se evidenciava era uma camada imensa de gordura na zona que deveria ter sido a cintura… e o estômago saliente e a barriga não menos, mais parecia uma gravidez quase em final de tempo.

A vida pisava o asfalto como se pisasse um delicado tapete, como se pisasse o palco na mais requintada passagem de modelos… e as mãos, numa posição snobe, gesticulavam em simultâneo que o corpo, para fazer notar as pulseiras que reluziam no braço e os anéis (uns quantos), nos dedos.

A rua estreita e íngreme ficou impregnada pelo cheiro a perfume, caríssimo, que a vida usava. A vida parecia querer deixar um rasto de si, ao passar pela ruela, que se tornava mais estreita e mais íngreme com a sua presença.

A vida, exuberantemente, cumprimentava quem se cruzasse com ela. A vida queria dizer a todos que estava ali. A cada cumprimento, parecia segredar: eu sou a vida! Vejam como sou bela, elegante, conhecedora, ágil… A vida exercia o seu fascínio. A vida fazia-se notar pela languidez do seu olhar e pelo constante ajeitar dos cabelos escorridos e pintados de uma cor em voga.

A vida tentava deixar transparecer um elevado grau de cultura, deixava que percebessem que ia a passar alguém muito versado em múltiplos temas e subtemas, que a vida na vida vai aprofundando.

E a vida percorreu o quarteirão, no seu passo inigualável. Atravessou o parque de estacionamento, meteu-se no carro e com um arranque impecável, fez-se ao labirinto da cidade, entre múltiplos cruzamentos até estacionar à sua porta.

A vida entrou finalmente na sua intimidade. Para trás ficara toda uma rua perfumada, feita de calçada escorregadia e todo o ror de gente que deixara cochichando, na esplanada onde elegantemente pedira e tomara um chá de ervas, como era elegante, actualmente.

Descalçou-se, despiu as calças que pareciam uma prensa que a deixava angustiada e finalmente respirou…

Sentou-se ao espelho, no quarto onde a cama a convidava a um relaxamento e olhou-se. Demoradamente olhou-se nos olhos e balbuciou meia dúzia de palavras: “Odeio-te!” “Odeio-te desde sempre! Sou gorda, deselegante, só sei o que os outros sabem e que copio, sem originalidade…” Num suspiro pegou num lenço de papel e limpou o batom, esfregou o rímel dos olhos e voltou a vociferar:
”Quem é esta?” “Que olheiras! Que lábios descoloridos!”… Levantou-se mas não olhou mais para o espelho. Estava consciente que qualquer árvore do parque que atravessara no regresso a casa, era mais esbelta do que ela, mesmo as centenárias…

E a vida atirou-se para a cama, cerrou os olhos e antes de adormecer ainda pensou que, a sua vaidade só servia para amarfanhar os que se atravessavam no seu caminho… e sonhou que ia numa padiola repleta de pétalas de malmequer, dançando a dança do ventre, entre chuva de flores e moedas de ouro…

Mas viva a vida! A vida é esta loucura e cada um de nós é esta demente existência…


27.11.06

2 comentários:

Anónimo disse...

Sabes que a vida que serve para amafanhar os que com ela se cruzam, nem pensa nisso. E se pensar, já não é esse tipo de vida, é uma vida mais generosa.
Beijinhos

Leonor C.. disse...

A vida é uma dádiva que pode evoluír para o bem ou para o mal. Passa-se a vida a tentar vivê-la de outra maneira, mas a vida diz-nos NÃO!Para uns é mãe, para outros é madrasta.